ALTERAÇÃO DO ENDEREÇO

domingo, 4 de janeiro de 2009

Conversa com MIA COUTO

Por Fábio Zanini*


Mia Couto é um dos mais conhecidos escritores africanos da actualidade. Moçambicano da Beira, 53 anos, filho de portugueses (branco, portanto), já foi comparado a Guimarães Rosa e aparece frequentemente na lista de possíveis vencedores do Nobel de Literatura (provavelmente não para breve, no entanto, já que Mia ainda é relativamente jovem e a língua portuguesa ganhou recentemente o prémio com José Saramago).
Ele me recebeu em seu escritório no centro de Maputo, há duas semanas. Na verdade, peguei uma boleia com meu amigo Leonencio Nossa, repórter de O Estado de S. Paulo, que havia marcado a entrevista e me convidou para acompanhá-lo. Eu confesso que não conheço nada da obra desse sujeito baixinho e franzino, piadista e hiperactivo, que já tem 20 livros publicados, todos tentando decifrar a alma moçambicana.
Deixei toda essa parte literária para o Leo perguntar. Mas esse escritor também é um analista muito interessante da sociedade e da política africanas, e suas opiniões eu resumo a seguir.
Logo no início, me estranhou o local onde nos encontrámos. Que lugar era aquele?, perguntei. Era a sede de uma consultoria de projectos ambientais, da qual o biólogo Mia Couto é director. “Não sou apenas escritor, também faço coisas sérias”, afirmou, para quebrar o gelo.
Sentámos numa mesa de madeira enorme e nos pusemos a prosear.
De cara, deu para perceber que Mia é um intelectual que não se conforma com velhos estereótipos e ideias pré-concebidas sobre o continente em que vive. “A África ainda é vista pelo mundo como uma coisa exótica, de um velho contando histórias perto de uma fogueira, dos feiticeiros, dos curandeiros”, disse. Essa, segundo ele, é uma imagem que ignora 50 anos de independência africana, de urbanização dos países, industrialização e formação de algumas das mais barulhentas metrópoles desse planeta (tente contar histórias ao redor de uma fogueira em Lagos, na Nigéria, ou Kinshasa, no Congo, por exemplo...) . Muito pouco de bucólico, portanto.
O pior, diz Mia Couto, é que essa imagem é o pilar sobre o qual os africanos construíram suas sociedades. “É alguém que se olha para o espelho, mas esse espelho foi inventado por outro”.
Num continente em que se culpa até dor de dente na colonização, como faz Robert Mugabe no vizinho Zimbábue, o escritor moçambicano pede que sejam estabelecidos limites sobre o quanto pode ser debitado na conta da história. “Esse argumento do passado, essa posição vitimista de que a história é contra nós, está saturado. Não se pode pensar que é tudo derivado da herança colonial. Esse discurso tem de terminar”, diz ele.
Moçambique é um país considerado modelo de crescimento, democracia e estabilidade na África, mas Mia Couto é um intelectual inconformado. Reconhece os avanços, mas mostra uma certa melancolia.
“No fim da guerra, em 1992, tínhamos a crença de que éramos capazes de construir tudo. Fizemos paz, um sistema político aberto, multipartidário, e algumas coisas estão mudando. Temos liberdade de imprensa, de pensamento. Mas há outras coisas que são tristes. Nós pensávamos que iríamos inventar um país com um sistema próprio, fundamentado na cultura moçambicana. E agora percebemos que temos um país como outros. Só temos um nome diferente”, afirma ele.

É um paradoxo o que Mia Couto enxerga: para ser um modelo de estabilidade, foi preciso adoptar modelos importados que tornam todos os países mais ou menos iguais (reformas macroeconómicas inspiradas pelo FMI, por exemplo). O que vale mais, as vantagens da previsibilidade ou a tristeza da padronização?
Mia Couto é também visto como um rebelde, mas, talvez pelo peso da idade, isso tem seus limites. Ele ameaçou se rebelar contra o acordo ortográfico que vai vigorar a partir do ano que vem e padronizará (mais uma padronização...) a língua portuguesa nos oito países que a adoptam oficialmente. Mas desistiu: vai-se submeter à regra, embora continue crítico dela. “O mais perigoso é que está se criando uma ilusão de que é por essa via que se cria proximidade entre as literaturas dos países lusófonos”.
E o Brasil? Mia é um adorador assumido do nosso país, e viaja para cá sempre que pode (virá de novo em Dezembro para um seminário). Pergunto a ele se a presença crescente de empresas brasileiras em Moçambique não pode ser vista como uma nova forma de colonialismo. Ele responde de forma surpreendente. “Nós adoraríamos ser colonizados pelo Brasil. A única maneira de ser independente é ser dependente de vários”.
Por ali, como em todos os cantos do mundo, também se vê muita novela da Globo. Ele não gosta, mas é voto vencido em casa. “No horário das novelas, eu tenho de ir para o computador, sou expulso da sala pelo resto da família”. Pior, diz ele, é a imagem distorcida do Brasil que é passada. “Muitos moçambicanos conhecem apenas o Brasil das novelas, esta máscara que se apresenta”.
A entrevista vai terminando e pergunto por que raios ele tem uma empresa de consultoria ambiental? Mesmo com todo seu renome não consegue viver só da literatura? Ele diz que conseguiria, mas que não quer.
“Eu posso confessar que hoje já conseguiria sobreviver razoavelmente como escritor. Mas não quero, por várias razões. A escrita é uma paixão total, quero manter com ela uma relação lúdica, em que não dependa dela para ganhar dinheiro”.

in SAVANA

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